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O medo de Lobo Antunes

Mostrou-me a análise à próstata no café

Um bocado alta não está?

Um bocado alta, de facto, e a gente os dois a olharmos o papel como se pelo facto de o olharmos muito tempo os números baixassem: não baixavam. Mantinham-se inamovíveis, a encarnado. Acabou por dobrar o papel e guardá-lo:

- O meu médico marcou-me consulta para o especialista

e silêncio. Sentou-se à minha mesa sem pedir licença, a olhar-me ­

- Acha que é grave?

e não respondi porque não queria resposta. Queria alguém à frente dele, apenas. Tirou os cigarros do bolso, voltou a metê-los.

- ­Não se pode fumar em parte nenhuma, sorte malvada.

Lá fora, do outro lado da vitrina, o quiosque dos jornais e revistas. Numa delas um casal abraçado: Mécia e Raul, separação no horizonte? E frio, e chuva. Não calha bem adoecer em fevereiro. Faltava-lhe um botão num dos punhos da camisa, a barba mal feita no queixo:

- Desde que recebi a análise nem durmo

e na mesa vizinha um par de senhoras gordas, cheias de anéis, a cochicharem.Entre ambas a revista do quiosque, aberta nos desenvolvimentos da possível separação da Mécia e do Raul. De esguelha, em letras gordas sobre uma fotografia: Mécia: Tudo tem a sua duração; Raul incontactável. Comentou ­

- Isto da próstata é uma gaita e em letras gordas, sobre outra fotografia: Um amigo de Raul: Em devido tempo ele dirá de sua justiça. Não, mais completo: Um amigo de Raul, que solicitou anonimato: Em devido tempo ele dirá de sua justiça. Percebia-se que as senhoras esmiuçavam o assunto, uma delas mencionou uma actriz que a senhora afirmava ter má índole:

- ­Não suporta que os outros sejam felizes, aquela, fez o mesmo à Patrícia, dona Esperança, lembra-se?

A dona Esperança lembrava-se

- E à Carla, já agora
enquanto o da análise

- Vai na volta tenho um cancro, amigo tentei um gesto de

- Hoje em dia essas coisas

que não me saiu bem, saiu mais do tipo

- Ninguém cá fica para semente, não é?

de maneira que emendei

- A maior parte das vezes são falsos alarmes

os cigarros saíram de novo e voltaram ao bolso ­

- E se não forem?

e a barba mal feita pareceu aumentar. No outro punho havia botão, e haver o botão, não sei porquê, alegrou-me:

talvez tenha interpretado como sendo um bom sinal em relação ao cancro.
A amiga da dona Esperança, assanhada com a actriz ­

- O sarilho que ela arranjou à Débora na época do futebolista, já pensou?

A dona Esperança já tinha pensado:

- Uma galdéria

definiu ela

- Uma galdéria e tanto

mas havia o botão, felizmente. Por pouco não o aconselhei a agarrar-se ao botão. A amiga da dona Esperança gostava tanto da actriz que se ela caísse ao Tejo lhe atirava uma palhinha para ajudá-la a não se afogar. Em lugar do conselho de se agarrar ao botão afirmei com autoridade ­

- O que mais há por aí são falsos alarmes

de cabeça a desviar-se para a Célia, coitada, que usava um decote tão profundo como uma ravina: uma rapariga de bem, notava-se logo nos olhinhos ferozes, uma vítima. Ganas de interrogar a dona Esperança

- Quem é a Célia, afinal?

com uma parte do meu corpo a tentar apreciá-la em detalhe. Aí, infelizmente, a amiga da dona Esperança impediu-me os propósitos ­

- Embora no caso do futebolista o rapaz tenha culpas no cartório

e a impressão que a análise aumentava no interior do casaco, a latejar:
­

- Vai-me nascer um neto para o mês que vem, já reparou na coincidência?

e quem seria a Célia, meu Deus? E a Patrícia? E uma Raquel que surgia agora na conversa ­

- Ao menos a Raquel é o filho do ministro e pronto

O neto que nascia para o mês que vem obcecava-o: a filha empurrava a barriga a custo, de pernas inchadas:
­

- Se der para o torto mal vou conhecê-lo

radioterapia, medicamentos, misérias, visitas das duas às três nos dias úteis, das duas às cinco aos fins de semana, algálias, dores, o da cama à esquerda a pifar do esófago suplicando ­

- Olha-me os meninos, Laurinda

e o decote da Célia a inquietar-me. Abaixo do decote umas calças tão justas que só podia despi-las à tesourada. Estava capaz do sacrifício de ser eu a pegar na tesoura.
­

-O primeiro neto, compreende?

Compreender compreendia, mesmo de tesoura nas unhas. Não te esqueças de comprar a revista ao saíres daqui porque há-de haver mais fotografias de certeza. Há-de ou hão-de? Não interessa desde que as fotografias lá estejam, de qualquer maneira a quarta classe já cá canta. Em relação ao cancro lembrei-me do treinador do meu clube ­

- Há que levantar a cabeça e pensar no jogo do próximo domingo

e limitei-me à primeira parte da frase. Este treinador é bom, pelo menos pôs aquela cambada a correr:
­

- Há que levantar a cabeça

garanti para microfones invisíveis, e acrescentei

(não daria grande treinador eu, comigo a cambada amolecia logo) ­

E ter pensamento positivo. Esta do pensamento positivo era do primeiro-ministro:

- Pensamento positivo, senhores deputados, pensamento positivo

mas ninguém, mesmo do partido do governo, aplaudiu. Acrescentei em desespero ­

- Vamos aguardar com calma pelo especialista

enquanto a Célia, sem calças, jurava ­

- Tudo tem a sua duração

de maneira que o melhor era não perder muito tempo antes que a duração acabasse.

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