Há quem goste de chamar viagem a esta coisa que é a vida. Eu não concordo. Viagem para mim é sentar-me num meio de transporte e ver a paisagem a mudar por uma janela. Sim, em pé também vale, como eu só considero viagem a sério a partir de um certo número de quilómetros, e que impossibilitam a viagem desacomodado.
Algures no percurso entre o meu nascimento e o momento presente perdi-me. Até estava a ser um começo promissor. Mas de repente a vontade de fazer mais e melhor perdeu-se.
Por acaso acho que consigo precisar o momento da desgraça. Mas não gosto de culpar outros por males que devem ser exclusivamente culpa minha.
E não sei o que sou, o que quero, para onde vou e o que fazer a seguir. Há algum tempo atrás, tudo tão simples. Não quero ser um adulto desses chatos, aborrecidos e prepotentes, com a mania que sabem tudo e que já se esqueceram do que é ser criança. Gosto de ver as coisas pelos olhos das criancinhas, apesar de não as curtir muito. É que elas agora são bichos estranhos, com uma redoma invisível à volta. Não falam com estranhos, não mexem em coisas por desinfectar, fazem birras por coisas estúpidas e não podem ser contrariadas. Uma maçada, portanto.
Gosto de coisas simples. Mas como elas estão definidas na minha cabeça. Nada de pré concepções pedagogicamente correctas. Na primeira classe ficava de castigo nos intervalos por pintar os gatos de azul. Para mim eles eram azuis, a minha cor preferida para o meu animal preferido. Chegou ao ponto de me tirarem os lápis azuis. É isso e proibirem os seres esquerdinos de usarem a mão esquerda. Bora cortar as asas.
Também gosto de comboios. Muito mesmo. Gosto do barulho, da confusão no cais, do pica, de viagens mais ou menos longas, da paisagem a mudar, de percorrer os carris a pé, de brincar com comboios antigos. Comboios são propícios ao pensamento. Criam uma espécie de transe.
Contudo não consigo pensar. Eu até sei o que devia fazer. Mas há o comodismo. Nem falo do medo, que nunca gostei muito dessa palavra.
Podia pegar num papel e tentar definir o meu futuro. Mas não estou para isso. Porque até sei o que me espera. Nada do que estava esperado.