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Toca como a chuva

As 18 horas de sexta-feira eram sempre horas de martírio. Quase que se implorava ao relógio para não chegar lá. Uma vez no átrio, sabíamos que não havia volta a dar: nem em dias de tempestade deixou de vir. Subíamos as escadas em caracol em fila indiana, a pensar na hora secante que tínhamos pela frente. Estávamos por cima da igreja, onde a humidade era tanta que água pingava da janela.Á minha frente um quadro com linhas de pauta pintadas, muito esbatidas, uma clave de sol e uma clave de fá, às vezes uma clave de dó, primorosamente desenhadas a giz. As mesas eram toscas; as cadeiras ultrapassavam a altura das mesas. Ao canto estava o órgão, onde não tínhamos autorização de tocar. Pois sexta-feira era dia de aula teórica, e eu não percebia como a Música poderia ter teoria. Para que me serviam os intervalos musicais se eu já conhecia todas as notas de todas as escalas e em todas as claves? Por que é que tínhamos que saber fazer contas complicadas de multiplicar e dividir; autênticas fórmulas, para saber o tom a aplicar? E os testes? Com ditados musicais, audições de sinfonias onde era preciso identificar cada instrumento. Mais o canto e o solfejo. Oh, que ódio ao Artur Fão! E que ódio à teoria. Fazia a vida negra ao meu professor. Tanto que lhe boicotei um teste. A nossa relação era construída sobre sarcasmo. Teria pouco mais que 10 anos que eu, logo não ganhava o meu respeito. Não nas aulas teóricas.

Mas nas práticas tudo mudava. Ali eu só procurava um murmúrio de aprovação, tantas lágrimas que engoli por ouvir um "péssimo", ou um "não queres saber disto para nada". Não é verdade, eu vivia para aqueles 60 minutos de quarta-feira à tarde. Um dia chovia lá fora. Eu não estava a conseguir obter nada da partitura de Bach. Ele olhava lá para fora. Eu desisti. Então ele disse, toca como a chuva. Como a chuva? Sim, olha para a chuva e faz como ela. E apontou para a janela, onde as gotas esbarravam contra o vidro, se desfaziam e escorriam. E eu pressionei as teclas, suave e rapidamente, como a chuva pressionava o vidro. E assim toquei como a chuva.

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